ESCRITA CRIATIVA II
(curso anual)
(curso anual)
A formação de nível II de Escrita Criativa parte de diversas propostas temáticas, para explorar e testar novas versões e subversões da linguagem escrita e falada.
O esplendor da escrita poética, o poder da ficção e não ficção, a riqueza do diálogo, o engenho de contar histórias e ler em público, os procedimentos para editar um livro, a sedução da literatura e do cinema e o potencial do "Short Story" são os desafios lançados aos participantes, para que os explorem e testem activamente. O projecto final tem como temática a criação de "Short Stories". Formadoras: Carlota Gonçalves, Francisca Macedo |
'a festa'
Por Laura D.
(2020; literatura e cinema; 817 palavras) O primeiro a dar o alerta foi o rapazinho que distribuía os jornais. Ainda mal nascera o sol, já pela estrada da colina subiam enormes furgonetas, tão sobrecarregadas que a carroçaria quase raspava no chão. O portão principal fora aberto e os camiões haviam desaparecido por detrás da folhagem que circundava a casa grande. Montado na sua velha bicicleta com apenas um travão, o rapazinho voou em direcção à vila, ansioso por contar a novidade. — Grande parvo, então tu vens contar-nos isso tudo sem ao menos saberes o que levava o camião? Volta lá e tenta descobrir o que se passa — foi o comentário geral. Veloz, pedalou outra vez colina acima e, contornando o muro até se aproximar o mais possível da entrada da casa, verificou que, sobre a relva, tinham sido colocadas grandes caixas. De dentro delas começavam a extrair estruturas metálicas, mesas e cadeiras desmontadas e outras volumes que não conseguia identificar. Um homem lançava ordens, põe isto aqui, mete isso acolá, ao que os outros obedeciam sem pestanejar, começando pouco a pouco a adivinhar-se a forma de uma imensa tenda. Aproximava-se a hora do almoço quando o rapazinho, sentindo que tinha, por fim, alguma coisa que contar, voltou a descer a encosta com os pés fora dos pedais para atingir mais velocidade. — Deve ser uma festa! — Exclamaram na vila. Será que se vai casar alguém? Será um aniversário, talvez, ou um baptizado? Mas a filha do sapateiro, que tinha trabalhado na casa grande, garantia que em Agosto ninguém lá fazia anos, que a senhora já não tinha idade para ter filhos e que as meninas já tinham passado pela pia baptismal. De modo que o rapazinho foi repetidamente enviado estrada acima e cada vez que regressava, revelava novos detalhes: tinham sido colocadas mesas redondas dentro e fora da tenda, cobertas por toalhas muito brancas sem uma única ruga, cada qual com 6 cadeiras dispostas à sua volta; por todo o lado circulavam empregados inquietos, direitos que nem varas, vestidos a rigor; à entrada da tenda estava agora um grande balcão coberto por fileiras de copos, garrafas e bandejas metálicas, tão reluzentes que pareciam escudos. — E esta música que chega até aqui abaixo? — Ah, sim, já me esquecia, estão a testar o som — replicou o rapazinho com o desenvoltura própria de quem viu muito mundo.. Por esta altura já eram muitas as crianças que subiam e desciam a colina nas suas bicicletas decrépitas, quais bandos de pardais a voar muito perto uns dos outros. No povoado, a euforia era grande. Todos se sentiam contagiados pelo espírito festivo. Corriam do talho para a mercearia, da padaria para o café com tal ânsia e alvoroço, dir-se-ia que a festa era ali mesmo no adro da igreja e que estavam todos convidados. A filha do sapateiro, apreciando o protagonismo, desdobrava-se em esclarecimentos inventados no momento, sobre a casa em questão. Já o sol enfraquecia quando os miúdos, sem fôlego, chegaram com a notícia de que tinham sido colocadas luzes entrelaçadas nos ramos das árvores. E que sobre as mesas brilhavam velas dentro de campânulas de vidro. Todo o jardim se tinha iluminado como se fosse de dia, pareciam estrelas, parecia o Natal! Merecia a pena ir ver. Mas a população estava ocupada a observar, com respeito e vaga inveja, os veículos dos primeiros convidados que, em procissão, cruzavam o largo principal da vila e se metiam encosta acima. Até que, impulsionados pela força invencível da curiosidade, começaram eles também a subir discretamente a colina, a pé, escondidos pelas sombras, seguidos pelos animais. Não demorou muito até toda a população se encontrar por detrás do muro, perto da casa, espiando o que lá se passava. Melodias intemporais, conhecidas de todos, envolviam o ar nocturno, quente, de Agosto. Nunca se conseguiu apurar quem, de entre eles, foi o primeiro a fazer-se acompanhar de uma garrafa de vinho, de uns croquetes de javali, de umas fatias de queijo. Só se sabe que, num ápice, já pelo chão se lançavam as mantas e, sobre elas, travessas repletas de iguarias e jarros a transbordar, numa sintonia perfeita que dispensara palavras. Também ninguém se lembra quem teve a ideia de puxar o outro para o baile. Só se sabe que, dois a dois, começaram a dançar descalços sobre a terra batida, de início a medo, depois em lances estonteantes, alumiados pelas luzes suspensas nas árvores da casa grande. Nessa noite toda a população dormiu ao relento, extenuada, coberta pelas mantas, de cabeça amparada no lombo dos bichos. O primeiro a despertar foi o rapazinho dos jornais, habituado a acordar cedo. Lançando um último olhar ao jardim vizinho, agora esvaziado de vida, montou a sua bicicleta e começou a descer a colina sem fazer barulho. Nem se tinha lembrado de espreitar a festa da casa grande! E que importava? Melhor que a sua festa não tinha sido de certeza, não a trocava por nenhuma outra. 'a garrafa de vidro verde'
Por Paula Frazão
(2019; proema; 198 palavras) A garrafa de vidro, apresenta-se com um palmo e meio de altura, e um peso não superior a 700 gramas. Languidamente escultural é o seu corpo. Frio, e cilindricamente dilatado, desde a base até ao início do pescoço, sítios por onde é firmemente agarrado ou arrancado por humanizadas manípulas que o exibem (ao corpo da garrafa) numa dança desenfreada. A garrafa é o fogo dos fenícios naquela praia, recetáculo de luz, viscosidade de mel e fel. Bela, esperançosa, amorfa. Rocha vítrea de corpo, não ao abandono... fixo, imutável. Interior vazio de cheia alma que emana calma, horrores, louvores. Homens moribundos, sem mundos, que a garrafa não mata…. Só o sangue derramado pela verde garrafa com cheiro a traça. Mosto embriagado, destilada ilusão, que a podridão não cala a razão da garrafa. Ao longo do tempo, por vezes, palmilha deveras, atravessa estações, multidões, perde-se no planeta onde habita, a garrafa comunica. Navega, afunda-se, vem à tona, perde o norte, ergue-se, ama. Torna-se a espera, o alento, a máscara mensageira do sonho, pura alucinação, perdão. No seu interior moram confidências, uma espécie de aglomerados de génios bem afunilados que espreitam de laivo a porta de saída para a sua entrada. 'a minha rua'
Por Cristina Duarte
(2019; objectos e espaços; 10 páginas) 'a tentação diabética'
Por Arnaldo Cordeiro
(2020; objectos e espaços; Azulejos já amarelados com imagens de coelhos, galinhas, couves e outros legumes, pintalgados, aqui e ali, com instrumentos outrora usados no campo. Salpicos de gordura já petrificados, emolduravam um fogão de ferro forjado, assustadoramente preto, com os cantos floreados e as portas entreabertas devido à ferrugem nas extremidades. Uma panela, demasiado areada pelo esfregão, brilhava, aparentemente ainda com restos da última refeição ali confecionada. No lavatório de mármore estalado, vários pratos conviviam entre si disputando as gotas de água que sincopadamente, saíam de uma torneira presa com arames para não se soltar da parede. Na chaminé de tijolo vermelho tingido pela fuligem, objetos de recordações antigas contrastavam com as panelas e frigideiras suspensas em pregos já enferrujados. A lareira, com troncos queimados e sem brasas, prenunciava o fim do inverno. A lâmpada pendurada por um fio no teto, estava apagada, deixando a cozinha na penumbra. Uma janela voltada a este, deixava entrar os primeiros raios de sol do dia através dos vidros estalados. Pelas frestas, ouviam-se os ruídos do campo, ao longe um burro zurrava, as galinhas resmungavam, e o som dos pássaros sobrepunha-se a tudo o resto. A luz ia lentamente descobrindo uma mesa de madeira tosca, ainda com recordações de tinta branca. Um livro, com as pontas dobradas e já amareladas pelo tempo, equilibrava-se em cima de uma garrafa de uma qualquer bebida, um copo lascado na borda acompanhava-a. Mais adiante, uma seringa sem agulha, jazia, abandonada em cima de uma bolsa de plástico já gasta. A luz avançava preguiçosamente, revelando um bombom redondo, de chocolate escuro brilhando aos raios de sol, apoiado no papelote colorido e aberto como uma cama confortável. O canto da cozinha vai saindo da penumbra, e a luz mostra agora um vaivém de uma cadeira de baloiço. Apenas uns chinelos com buracos e a cor do tempo. O ranger suave e metodicamente sussurrante, acompanha o chilrear dos pássaros. Alguém imprime um movimento constante, lento e paciente. Os raios de sol, cada vez mais quentes, beijam o bombom que a cada instante vai perdendo o brilho. Gotas de chocolate começam a responder ao calor suave do sol da primavera, qual erupção na pele num dia de verão. Uma gota vai escorrendo lentamente pela esfera, apetitosamente negra, como uma lágrima que se acomoda no papelote impecavelmente alisado. A lágrima de chocolate vai-se transformando uma pequena avalanche de chocolate que vai derretendo e que o papelote já não contem, deixando escapar para a mesa, aquela mancha escura e espessa que lhe preenche as frestas irregulares. A esfera redonda que era o bombom está distorcida, revelando agora uma outra esfera mais clara, de pele rugosa que se liberta da escuridão doce. O tempo vai passando e o vaivém da cadeira de baloiço mantem-se inalterável, uma manta cinzenta de franjas amarelecidas cobre umas pernas que impõem o ritmo. O chocolate agora espalhado pela mesa não passa de uma mancha pastosa pouco atraente. A avelã mostra-se no seu esplendor, a pele rugosa cria subtis sombras na superfície e a luz projeta uma sombra na mesa que se assemelha a um sol negro. A cadeira de baloiço pára. Uma mão enrugada pela idade, as unhas sujas do trabalho, os dedos curvados pela artrite, dirige-se lentamente para a avelã que descarada se exibe. Dois dedos abraçam, delicadamente, o fruto e o encaminham para uma boca, quase sem dentes, envolvendo-a em movimentos suaves e precisos. Um suspiro de prazer sobrepõe-se ao som dos pássaros. A cadeira de baloiço volta ao seu movimento constante, agora com o homem de olhos fechados e um sorriso no rosto queimado pelo sol. 'Central Parque Nova Iorque (Tributo a John Lennon e Zeta Jones)'
Por Paula Prisca
(2019; objectos e espaços; 271 palavras) Fim da 5ª Avenida. Sons de Rap e um cheiro antigo, quente e húmido, lembra a floresta tropical. Sinto frio, daquele que só cessa quando me apertas e me infetas com o teu corpo, oriundo do lado de lá do oceano. Pedalamos, pasteleiras errantes, por alamedas congestionadas de transeuntes perdidos no tempo. Almas penadas sobrevoam o tapete verde da cidade. Silenciosas, as pedras contam histórias secretas, mentiras endiabradas, planos sofisticados, mortes ali manchadas. Cada cadeira, sua memória. Mais histórias, mais sons que nos transportam para a utopia, de viver em paz e harmonia. No improviso pueril de quem se queda a sonhar, que o tempo e o espaço não existem, só a imaginação. À noite tudo se altera. As sensações mais intensas, os sentidos, mais alerta. A luz dos candeeiros penetra na neblina cerrada da floresta, e o arrepiante silêncio, do breu. O medo do desconhecido, escoltado em transporte antigo. Um bus conduzido por neto de escravo e o odor a equador. Das suas órbitas lunares, expressão ladina, carregada de mistério, leva-nos à Casa do Lago. Sentados na mesa de Zeta Jones, encarnamos vidas de faz-de-conta. Saltamos tempos, experimentamos o espaço, que foi ficando preso às memórias. Olhamos o lago e perscrutamos o fundo lodoso, que encerra histórias do tempo das hortas e pântanos da New Amsterdam. Restos de vidas, pedaços da vida. Artefactos da colonização, testemunhos das máfias criminosas. Sim, porque ali, tal como em Chicago, também se mata e se morre em Italiano e Irlandês. Crimes e castigos. Vinganças mundanas, crimes passionais. E o amor? A luz esconde o que as sombras revelam, no tapete em tons de verde. 'confinamentos (ou pesadelos)
Por Manuela Furtado Rodrigues
(2020; short stories; 12 páginas) 'conto à primavera'
Por Paula Frazão
(2020; short stories / projecto final; 12 páginas) 'crónicas de viagens atribuladas'
Por Cristina Duarte
(2020; short stories / projecto final; 112 páginas) 'dança do céu estrelado'
Por Ana Reis
(2020; personagens e diálogos; 704 palavras) - Já reparaste que daqui não se vê a lua. Vá, sai daí da janela, não dá para ver bem. Bárbara saiu, para a noite escura e fria. Deixou o calor da cabana aquecida e foi sentar-se nas pedras molhadas com musgo. De olhos postos no céu continuou a conversa. - Olha só, são estrelas cadentes – disse enquanto apontava para o céu. - Já pediste um desejo, diz que temos de pedir um desejo. - Diz quem? Quem é que inventa essas coisas? - Sempre tão inquisitiva. Pede lá o desejo, pode ser que se realize - respondeu ele, de forma serena. - Pedir o que quer que seja a uma estrela, que não é estrela. Sabes… é só uma rocha que está a cair. Não me parece uma boa política. Já imaginaste, se em vez daquelas estrelas, fosse o nosso mundo? E se o mundo caísse? - Oh, o mundo não pode cair. - Porquê? Quem o está a segurar? Está em cima de uma rocha, como nós e olha que, mesmo assim, podemos escorregar daqui e partir a cabeça. Ou será uma marioneta, como aquelas que vimos há tempos no museu, um Pinóquio desengonçado a dançar. Imagina só, os planetas a dançar como as pernas do Pinóquio, em movimentos aleatórios e completamente descoordenados… - Assim passávamos o dia com tonturas, sempre com a cabeça à roda. - A terra também gira e tu não ficas tonto. Ou será que tem uma mão por baixo, tipo uma coisa divina. Um Deus, ou melhor, vários, seguram à vez para não se cansarem. Estão sentados no infinito, a fazer malabarismos com os planetas. - E se caíssemos para o infinito, entravamos num buraco negro, andávamos à volta, como a roupa na máquina de lavar e saíamos do outro lado, numa outra dimensão do espaço-tempo. Estaríamos a olhar para este céu ou para outro? Estaríamos aqui os dois? Qual seria a nossa profissão? - Podíamos ter outra história, acrescentou ela. Sentada num jardim, com três laranjeiras na ponta e um canteiro de rosas púrpura em toda a volta. No chalé, a lareira emana cheiro a fumaça e calor, pela casa de portadas vermelhas, com um alpendre grande e um baloiço. A vista é para a colina, com um moinho a rodopiar no ribeiro que corre sem parar. E ao fundo, uma casinha com rampa íngreme azul e um telhado negro. Vão saindo, em fila indiana, cinco galinhas e… - Estavas a ir tão bem e tiveste que estragar tudo com a canja e o cacarejar - interrompeu ele. - Isso é a tua vida noutra dimensão, ou um sonho? - questionou em jeito de desafio. - Nem uma coisa, nem outra, é um caminho que não escolhi, estava ali, como o “quantos queres”. Lembraste do jogo que fazíamos na escola? Tínhamos de escolher uma face com um número. Eu, tu, todos escolhemos um caminho. Eu escolhi viver na cidade e fazer bailado, mas podia ter ido para o campo e ter uma estufa de mirtilos. Iria ser assim tão feliz? Tão realizada? Não sei, ninguém pode saber. A vida é uma sucessão de “e se?”…, não podemos ficar a pensar em todos, senão cristalizamos no tempo e não fazemos nada. - Então, nessa vida, numa alternativa quântica, serias agricultora. Parece-me bem, que os mirtilos estão caros e dá sempre jeito ter um amigo agricultor. - E em Marte, será que também conseguimos ver a dança das estrelas? Ou o céu está sempre vermelho? - Ah, o quê? - perguntou ele confuso. - Em Marte, em 2050, quando formos colonizar outro planeta porque este já não dá para mais. Será que também temos céu estrelado ou está sempre vermelho? - Devemos conseguir ver uns pequenos cristais, suponho… A dança verde celeste prologou-se durante minutos no céu, ou terão sido horas. O vento a dançar em tons de verde e amarelo, azul e violeta, num magistral bailado da natureza. - Vou colocar música, assim de um ritmo melodioso, clássica. A natureza inspira-me, vamos treinar a nossa nova coreografia aqui? - sugeriu ele. - Eu ia dizer para colocares a tocar Linkin Park, era mais adequado ao meu estado de espírito, mas vá, também pode ser a nossa música. 'DESENHOS DE TRAIÇÃO, DÚVIDA E ESPECULAÇÃO'
Por Cristina ALEXandre
(2020; short stories / projecto final; 50 páginas) 'haikus' #1
'haikus' #2
Por Paula Prisca
(2019; escrita poética / haikus; 39 palavras) A CORDILHEIRA Tua silhueta permanece serena no horizonte. ......................................... TARDE Nuvens pálidas embalam o meu olhar adormecido. ......................................... BONSAI Escondes a dor! Harmonia contida Em fuga libertadora. ......................................... A FLOR DO EQUINÓCIO Pesam as folhas Quando a flor se cala No Equinócio. 'monstros de estimação'
Por Inês França
(2020; short stories / projecto final; 39 páginas) 'narrativa (e)real'
Por Laura D.
(2020; short stories / projecto final; 29 páginas) 'o amor'
Por Cristina ALEXandre
(2019; escrita poética / o amor; 245 palavras) Falemos de Amor. De qualquer tipo de amor. De um amor perdido, bandido, desejado, fingido, obrigado, esquecido. De um próximo, longínquo, inventado, desconhecido, prometido, longo, curto, com peso, sem peso, leve, frenético, histérico, excêntrico, vazio. De um amor doce, amargo, insonso, picante, fraco, forte ou fino. Às cores, incolor, com odor, espesso, muito, pouco ou nada vivido. De um amor maldito que arde, que mente, que dói, que espera, que insiste e persiste. Que mora na alma, na carne, na boca, na mente, que brilha e escorre quente. Do louco que gruda na pele, que sussurra, que inquieta, que desperta, que saliva, se engasga, queima, treme, comove e prende. Do frágil que com medo se move, do vaidoso que sem piedade se exprime, do outro que no escuro se esconde, e do secreto, para sempre o mais querido. Do eterno que com beijos se come, com os olhos se toca, no peito se deita, no sonho encarna, no prato se acalma, na cama se oferece, colhe ou foge. Do amor que vem nu ou de calças, Cabeludo, careca, com curvas, em reta, sem pintas, com estrias, com tiques, sem modas, com estranhos feitios e pelo na venta. Falemos do amor. Do amor ao ódio, do amor ao amor. Do amor ao outro, do amor ao todo, do amor ao próprio. Do amor à vida, ao tempo, ao fim e ao recomeço. Falemos do amor, do amor que desejamos ser, dar e receber. Falemos de Amor. 'o homem enlouqueceu'
Por Cristina ALEXandre
(2020; short stories / projecto final; Cada vez que um homem sai de casa é preciso compreender-se que existe uma boa probabilidade de ele não regressar. Porquê? – Exatamente por essa razão, essa mesmo que está agora a pensar. Um homem não regressa a casa, porquê? Hipótese 5
O homem enlouqueceu O homem perde-se no raciocínio, sente-se confuso. Já não pensa, tenta adivinhar. Escreve frases, coisas que houve, que acredita sentir. Não tem a certeza, mas escreve. Escreve, risca, corrige, apaga e rasga. Sofre e desespera. Escreve mais, mais rápido, tem medo que fuja, que a frase se apague do pensamento, que alguém algures no mundo lhe adivinhe as dores e as leve para si, para longe. Escreve torto numa folha com linhas, num guardanapo manchado de restos, num tecido rasgado ou na palma da mão. Observa e anota. Escreve. Procura outros trilhos para entender as perigosidades da escrita. Escreve com erros. Não percebe nada de escrita. Percebe de sentimentos. Vive a experiência da cisma, do desespero, da insegurança. Uma alegria surge-lhe no peito. Finalmente. Sozinho, descobre como uma frase solta, num pedaço de papel perdido, pode ser duas faces de uma mesma moeda. Ser confiança e traição. Amor e ódio. Coragem e cobardia. Guerra e paz. Liberdade e prisão. A frase, a que escreve, pode ser uma arma que mata ou um gesto que salva. A frase, será tudo o que um quiser dizer e o que o outro desejar entender. Será igual ou diferente. Não importa o que escreve. Escreve sem censura. A frase que for escrita neste segundo, poderá ser noite e ser dia. As palavras escolhidas e unidas, divergem pensamentos e ordenam diferentes destinos, na infinita diversidade do Homem. As frases transformam-se e ajustam-se ao corpo no instante da vida em que são lidas. É crime não escrever. É impossível parar de escrever. Ele precisa escrever. Escrever sem culpa, sem medo nem vergonha. Escrever como respira. Ele precisa soltar as letras e esperar que a seu tempo o mundo as aprenda a ler. Ele precisa rescrever-se. 'O Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos'
Por Paula Frazão
(2020; flâneur; 485 palavras) Num cantinho de Lisboa, construído sobre uma colina rochosa repousa o miradouro da rocha. Contempla um pequeno e grandioso jardim, em declive semeado, por terras de retiro. Passeariam por ali, irmãs Carmelitas nos seus afazeres espirituais, orando por espécies arbóreas altamente distintas: Palmeiras, buganvílias, cedros abetos e ao Centro um alpendre circular de ferro esperança e arabescos ondulados. Viu nascer plantas trepadeiras que pintam o jardim num festim de geometria outonal. Destaca-se a majestosa paineira rosa em flor, que voa simplesmente, pela sede da viagem. Árvore de grossos espinhos, que guarda a sua história, de um lado o palácio (1), do outro o convento (2), vestindo-a de esplendor. Por vezes, dependendo da brisa, avista cerâmicas de fidalgos e alabardeiros (3) de tons mar. Três moedas que ficam, onde o poema se faz, à espera de um outro tempo para o jogo. Aos pés do alpendre o poeta (4), é evocado: “Ser alegre é ser luz, rir é florir. Cravos na infância, rosas pequeninas, São sorrisos de amor que estão a abrir.” A palavra chega-nos em tom de alento, ecos saudosos de vozes que cantam. O miradouro traduz uma espécie de incubadora de histórias, convidando à reunião do sonho, da introspeção, ao ócio visionário de estranhas e estridentes línguas. Ouvem-se as asas do vento, a preguiça do pássaro, o comboio que apita e somos chamados para um outro tempo. Olhos velhos de Homens fixos no rio, reescrevem a sua passagem na paisagem. A Batalha (5), a grande guerra (6), embarques de tropas, revoltas, a espera que não volta. O mirante contempla um outro mundo, uma tela gigantesca de um filme quase mudo: Na outra margem, o cristo recebe-nos, e a seus pés, nascem montinhos povoados de casas, torrinhas religiosas e edifícios caixas de uma cor perdida. A ponte (7) desenha-se na grande tela e oferece liberdade. O rio é o grande palco, embelezam exibindo cargueiros, cruzeiros, guindastes e contentores coloridos que a cena. Na grande margem ribeirinha, bem na mira de quem a ama, vislumbra-se a gare marítima no cais da rocha. Edifício portuário de armadura e betão, composta por dois corpos, uma ampla nave e um vestíbulo principal. Guarda murais Negreiros (8) evocando saltimbancos, estaleiros em obras, saudosas despedidas e passeios dominicais no cais. Se não fosse gare, seria com toda a certeza, uma gaivota em vigia. Na avenida, transeuntes esvoaçam no passar da calçada, ciclistas bem apetrechados, meio curvados de cabeça erguida e olhar hirto provocam uma imagem arrastada, em debandada. Ouvem-se levemente, velas sem casco que esbracejam numa ânsia de reparo. O ávido mirante debruça-se sobre a grade do anfiteatro, e vê nascer a dupla escadaria, saída ou entrada para o grande espetáculo. ..................................................... (1) Palácio Óbidos sabugal (2) Convento das Albertas (3) Militares munidos de albardas (4) Teixeira de Pascoaes (5) Batalha de la llys (6) I guerra mundial (7) Ponte 25 de abril (8) Murais da autoria de José de Almada Negreiros 'para ti'
Por Cristina Duarte
(2019; escrita poética / o amor; 325 palavras) Foi o reacender da paixão Depois da desilusão São baixos e altos Sempre em sobressaltos Gosto do bigode, do sorriso Gosto do sem jeito Até mesmo sem riso Gosto de ti assim imperfeito Encontrei-te ao lado do Zé Estavas ali assim em pé Depois na rede deitado Vi-te um malcriado O meu pai é professor de Medicina Sou estudante sou importante Olhei então para cima E vi ali um pedante! Em aulas conjuntas aprendíamos Casos clínicos complicados Em doentes na cama deitados Era assim que convivíamos Eu olhando-te de lado Para o teu ar enfadado Dando indicações e até directrizes Aos doentes, uns infelizes Chinelo aos descalços trazia Aos internados na enfermaria Via muito sofrimento Angústia um tormento Foi no dia da apresentação No hospital no telhado O trabalho assim partilhado De males do coração Eu fazia tudo perfeito Com descrição a preceito Dos sopros e ritmos alterados Tu reproduzias tudo o apresentado Já estamos atrasados O tempo a voar E tu amalucado Com ideias no ar Depois em concha com as mãos Sopraste a arritmia Foi ali arrebataste o meu coração Saiu dor veio alegria Foi assim a apresentação Do trabalho do mal de coração E o começo da nossa história Como não há memória Depois dos filhos e até netos Estamos agora nos quarenta Começamos sem metas Eram os anos setenta À beira da reforma Eu amuo e faço fitas Afinal não tinhas forma Nem foi amor à primeira vista Depois andamos de mão na mão Damos beijos sentidos E como perdidos Despertamos a paixão O cabelo embranqueceu Vestes bem e estás preocupado Com o futuro angustiado Não faz mal eu sou tua e tu és meu Estamos lado a lado Com família construída Sólida evoluída Dá-me um beijinho apertado E o meu mundo ganha cor e alegria Como no dia dos sopros do terraço Em que te vi com euforia Protegida no teu abraço Obrigada Meu amor meu amor Cris 'tempus fugit'
Por Arnaldo Cordeiro
(2019; objectos e espaços; 275 palavras) Do alto dos seus quase dois metros, o relógio de pé alto domina na sala vetusta. Os pináculos dourados ainda reluzentes da riqueza de outrora, encimam a forma de campanário de igreja que aloja o seu mecanismo delicado, mas sonoro. Ponteiros rendilhados como filigrana, apontam como setas certeiras para os números romanos estilizados e separados por flores de lis, pintadas num azul vivo, sobre um fundo de uma difusa cena de caça à raposa com os cães e cavaleiros em pose para o pintor. O vidro, que protege o templo do som, exibe uma moldura de flores campestres pintadas em suaves e envergonhados traços de tinta bege. Através do vidro baço, emergem duas correntes que aprisionam peças pesadas semelhantes a pinhas petrificadas de cor chumbo. Um pêndulo amarelo com pretensões a ouro, báscula mecanicamente ao ritmo do som do ponteiro que protesta com a passagem dos segundos. Indiferente aos comentários que recebe, o relógio continua impiedosamente a mover-se a cada minuto, num constante círculo de perpétuo movimento. Os minutos, são curtos para uns e de uma imensidão atroz para outros. Na mesa, junto ao relógio, encontra-se um chapéu de feltro preto, lustroso apesar da idade, imponente e a gerar respeito. Uma mão de luva branca levanta-o, descobrindo uma ampulheta com a areia de um azul oceânico toda depositada na parte de baixo. O chapéu preto é colocado nas mãos cruzadas. A tampa do caixão é fechada com estrondo que sai da sala aos ombros de quatro urubus de luvas brancas. Do alto dos seus quase dois metros o relógio de pé alto, indiferente às consequências dos seus minutos, continua em sonoros, tic tac, tic tac. 'um silêncio perpétuo'
Por Paula Prisca
(2020; short story; 305 palavras) Estava tudo como que parado... Estava tudo como que parado, como que de certo modo, congelado no seu próprio movimento… Um cheiro a terra seca, um calor tórrido, lembrando forno varrido antes de deitar o pão. Um silêncio perpétuo, gélido, que exaltava o medo ancestral do puerpério mancebo, antes de se entregar às balas. Sentia uma brisa suave de aroma discreto, que despertava memórias serenas de infância intensamente esquecidas no empedrado de Santiago do Escoural. A espera torturava a vontade de fuga, calava o medo da dor, camuflava sonhos de vã glória no regresso à pátria. Quais heróis!? Qual causa? Quedava-se em pensamentos filosóficos, questionando a sua existência. Qual o sentido e o valor de tantas vidas perdidas em terras longínquas. O que contava era sobreviver, voltar a casa, à monótona rotina de quem nada tem. E o tempo não passava… E a memória do doce balancear do cante alentejano, embalado na melodia quente e fofa, deitando-o em colchão de lã. O silêncio quebrado no sibilo das achas, que soltam chispas fugitivas do lume. Pegou no cajado e ajeitou as brasas. O crepitar das fagulhas que subiam, secavam chouriças pendentes em pau de marmeleiro. Encheu a chávena de chá de carqueja e partiu mais uma noz da Quinta do Pomarinho. Era assim que passava os serões, sozinho, sentado num mocho, dentro da chaminé de chão, perdendo-se nas persistentes visões e horríveis sensações da sua juventude em terras de França. Quem olhasse de perto conseguia ler nos seus olhos, que parte dele tinha ficado na Batalha do Lys. Todas as noites esperava que todos se acomodassem e voltava ao mesmo ritual. Precisava daquele tempo de recolhimento junto ao fogo, para se purificar. Depois, enxaguava o rosto com água gelada, que içava do poço da entrada e arrastava-se até ao quarto para descansar um pouco a alma. 'um vento muito leve passa'
Por Ana Reis
(2020; escrita poética; 69 palavras) Corre o rio tranquilo na montanha adormecida Um vento muito leve passa Agita as papoilas vermelhas Corre o rio tranquilo As ovelhas pastam no sopé Um estrondo rompe a madrugada O céu fica ardente, negro Corre o rio tranquilo A água borbulha efervescente A vida prestes a sumir levita em lume brando Corre o rio tranquilo Já só há pedras e poeira Acabou-se a vida A lava escorre vermelha |
'a minha rua'
Por Cristina Duarte
(2019; objectos e espaços; 7' 25'') 'A TENTAÇÃO DIABÉTICA'
Por Arnaldo Cordeiro
(2020; objectos e espaços; 4' 11'') 'confinamentos (ou pesadelos)'
Por Manuela Furtado Rodrigues
(2020; short stories; 3' 42'') 'haikus' #1
Por Manuela Furtado
(2020; escrita poética / haikus; 19'') 'monstros de estimação'
Por Inês França
(2020; short stories; 9' 47'') 'narrativa (e) real'
Por Laura D.
(2020; short stories; 59'') 'o amor'
Por Cristina ALEXandre
(2019; escrita poética / o amor; 2') 'O Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos'
Por Paula Frazão
(2020; flâneur; 3' 10'') 'para ti'
Por Cristina Duarte
(2019; escrita poética / o amor; 2'') 'tempus fugit'
Por Arnaldo Cordeiro
(2019; objectos e espaços; 2'03'') 'um silêncio perpétuo'
Por Paula Prisca
(2020; short story; 2' 30'') 'um vento muito leve passa'
Por Ana Reis
(2020; escrita poética; 41'') |