OFICINA DO CONTO - "SHORT STORY"
(curso trimestral) A sedução das narrativas curtas e o grande engenho para o pequeno formato é o que trabalhamos nesta Oficina de Escrita.
“Short Story” e Micro-Conto são géneros particularmente atractivos porque são velozes e concentrados e porque criam irreverências de estilo e mundos imprevisíveis. Exploramos ficções, lemos textos dos "grandes", criamos simulacros, recortamos ideias, usamos elementos de uma "Colecção Brique-à-Braque"; e escrevemos "Short Stories" e micro-contos. Rematamos a experiência com a criação de um projecto individual, tudo em versão curta. Formadora: Carlota Gonçalves |
'Períodos' por Juliana Almeida
(2020; micro-contos / projecto final) 'Poema ao escondido' por Madalena Cabral
(2020; objectos e espaços; 4' 13'') |
'2060 - uma borboleta no espaço'
Por Rita Carmo
(2019; short story; 241 palavras) Vera Motýlova encontrava-se em Lisboa para uma retrospectiva da sua obra. Original da antiga Checoslováquia, Vera era a artista mais famosa e bem paga do mundo. E ainda estava viva. Tinha dois olhos molhados de borboleta que se abrigavam sob grandes arco-íris monocromáticos de pêlos muitíssimo bem aparados. E por cima do seu lábio do lado direito tinha um dia pousado um insecto suave que ficara para sempre. Na verdade a sua aparência pouco importava. Vera viera para partilhar-se. A sua visão, a sua versão do mundo. Ao seu encontro vieram todas as artistas mulheres de Portugal que não conseguiram nunca dedicar-se ao seu trabalho. E eram muitas. E seriam muitas mais se tantas não tivessem morrido realizando trabalhos quase satisfatórios. Vera sentia-se simultaneamente lisonjeada e constrangida. Criaram um círculo à sua volta e todas queriam tocar-lhe. Vera apertou as mãos de todas as mulheres com as suas mãos de artista incendiando-as por dentro. Com as mesmas mãos deu a todas elas uma folha branca A4 com algo escrito que não consegui distinguir. Na manhã seguinte pequenos círculos de fogo identificavam as obras como vendidas apesar de todas elas pertencerem já a museus e colecções privadas, no entanto aquele pequeno insecto vermelho pousava agora incisivo e afirmativo sobre elas. Todas as obras tinham sido vendidas. Como, porquê, a quem, ninguém sabia. Mas naquele ano pelo menos duzentas novas artistas mulheres expuseram o seu trabalho em galerias portuguesas. Vera continuou a trabalhar. 'a bicicleta'
Otília Lourenço
(2019; objecto perturbador; 9 páginas) 'a corda'
Por Helena Campos
(2019; short story; 296 palavras) Não havia mais nada para fazer. A mocidade fora-se embora e restava o Inverno pondo neve nos sonhos não concretizados, e sepultando as últimas esperanças na antecâmara da morte. O relógio da vida estava no fim da corda. Uma vida deitada ao lixo, um emprego nunca conseguido, um marido frio e exigente, um filho autista que escondia, em bastas horas de denso estudo, a sua incapacidade para a vida. E ela, Maria das Dores, que se arrastava de médico em médico numa longa peregrinação de mazelas que ninguém entendia. Ora doía aqui, ora doía acolá, ora aparecia um inchaço, ora aparecia uma tremura. Uma histérica qualquer, rosnavam os médicos encolhendo os ombros com displicência. Certo dia, veio viver para a casa ao lado um certo vizinho e a esposa. O vizinho ocupava o tempo a embrulhar pacotes com corda, e Maria das Dores tinha uma dispensa cheia de rolos de corda que o marido roubava da repartição da função pública. Todas as tardes, batia o vizinho à porta de Maria das Dores a pedir corda e permaneciam os dois de corda na mão a dar corda às línguas enferrujadas. Falavam de tudo e de nada. Uma certa ternura emanava de uma adolescência mal vivida ou nunca ultrapassada. Aquelas tardes ociosas, em torno da corda, enciumaram a esposa do vizinho que decidiu visitar uma velha bruxa que lhe fabricou uma certa mistela para desprender o seu marido daquela incómoda vizinha. Consta que a magia negra contida na mistela, envenenou o filho autista de Maria das Dores que nunca mais se levantou. A própria, Maria das Dores, começou a definhar até um certo dia de verão morrer com um ataque cardíaco fulminante. A máquina que dá corda à vida parou. O vizinho desapareceu. Só o marido a chorou. 'a mesa'
Por Tiago Sanches
(2020; narrativa / short story; 12 páginas) 'anoitecer em casa, alma urbana '
Por Paula Carneiro
(2020; narrativa / short story; 610 palavras) Milhões de bicicletas inundam as ruas das cidades no final de um dia de trabalho. Pernas que pedalam a um ritmo constante, apenas interrompido pela imposição de um sinal vermelho nem sempre respeitado. O regresso a casa, por algumas horas de descanso, faz parte da insaciável linha de montagem, criada pelo regime, para melhorar a eficiência produtiva do país. As horas de silêncio, que separam os dias de trabalho, são para a chinesa Liu Z como janelas com vista para outras verdades. Até ao dia do decreto do estado de emergência, da sua província natal, para evitar o contágio do surto viral, os dias, os meses, e os anos, de Liu Z corriam sem deixar rasto de vida saborosa. Está claro que nem tudo sai como o planeado! “Como é que o omnisciente e omnipotente ‘Partido Comunista Chinês’, não foi capaz de prever, no seu próprio chão, tal trajetória”!? Interrogou-se, Liu Z, sem se preocupar muito com uma resposta. Adivinharam-se, no mínimo, dois meses de pura liberdade! Os segundos e minutos do seu tempo foram aspirados como as linhas de coca nos filmes. Nunca em tempo algum Liu Z esteve tão próxima de si. Desde o primeiro dia de confinamento, acordou todas as manhãs com um sentido de missão. Aquele tempo precioso tinha surgido na vida dela, no momento em que mais se contorcia para manter o equilíbrio, à semelhança de um trapezista de circo. No primeiro dia, bem cedo, pegou no habitual livro de leitura noturna e leu-o até saciar a sua vontade. Depois, de caneca de chá verde em riste, foi percorrendo e observando calmamente as diferentes divisões da casa. Fez uma lista mental do que deveria fazer em cada uma delas, exceto numa. De facto, não lhe faltava nada. Limpou, arrumou e organizou armários, estantes e mesas, até tudo se parecer com as fotos de revistas para interiores. O seu quarto, em particular, estava impecável, digno de uma dessas fotos, pensou. Nada perturbava a visão daquele quarto onde tudo lhe parecia surgir em perfeita harmonia. Muitas vezes, já deitada, vagueava o olhar por aquele espaço aberto e organizado, refletindo sobre a importância do respeito pelas regras de feng shui. Liu Z, também tinha muito prazer em combinar mobiliário de diferentes estilos, pensava que assim a individualidade de cada uma se manifestaria com mais notoriedade. Por fim, Liu Z acomodou-se na poltrona do último quarto a ser vistoriado, o de pintura. Mal se recorda da última vez que ali se sentou de forma tão contemplativa. Sentia-se dona de si e, por isso, estava em êxtase absoluto. Há aproximadamente dois anos que não tinha um pincel entre os dedos. As pressões do regime para a realização do «sonho chinês» foram-lhe encarcerando a vontade de pintar palavras atos e pensamentos. A noite chegou, e no cérebro de Liu Z fez-se luz. Lançou-se furiosamente à tela com o pincel e um punhado de cores e venceu todas as batalhas, ao todo foram 10. Todas as noites pintou até adormecer de ilusão. Decretada de novo a ‘liberdade’, Liu Z desceu calmamente as escadas do seu apartamento e chegou à rua. Num gesto simbólico de início de uma eventual nova vida, inspirou e expirou lentamente o ar poluído da sua cidade para de seguida ligar o telemóvel e num clique saltar para as plataformas online, e daí, quem sabe, para um pedaço de mundo. No dizer de Lao Zi (1), “uma longa viagem começa sempre com um único passo”. ............................................. (1) Também conhecido como Lao-Tzu e Lao-Tze, significa literalmente "Velho Mestre". Filósofo e escritor da China Antiga, Lao Zi é conhecido por ser o autor do importante livro Tao Te Ching, fundador do taoismo filosófico. 'coLEÇÃO MICRO-CONTOS'
Por Madalena Cabral
(2020; narrativa / micro-conto; 137 palavras) Vigio o meu ego. Tropeço nele em cada esquina. Num qualquer beco ensarilha-me. Engaiola-me numa imensa utopia. - DÓI-ME AOS KILOS!, gritaste. Meu guerreiro de cavalinho de pau. Saíste para comprar meias. Voltaste novo, cinco meses depois. Madalena Cabral (Kungokhala) Torneio de Escrita 2020 ................................................................. LUTO Ontem enterrámos o porquinho. Desidratado. A sua culpabilidade era imensa, mas a dignidade dissimulou-a. Maio traz o indizível. A par da vida a brotar por todas as frestas, as despedidas. O acne que transporta, conteve-lhe as lágrimas. Mas, no vigor do abraço que me deu, no cuidado que colocou no cavar da sepultura, na gravidade que nos envolveu quando, estáticos, louvámos, elas estavam presentes. É o meu pequeno homem, mas já deixa adivinhar de que cepa são feitas as suas raízes. Sei que os homens já o são, antes de o serem. 'desencontros bem conversados'
Por Luísa Buzin
(2020; short stories / projecto final; 12 páginas) 'g - - - -'
Por Rita Carmo
(2020; objectos e espaços; 242 palavras) Quando entrei na cozinha ele estava deitado em cima da mesa, de costas, com a cabeça virada para cima e dentes afiados que apontavam para mim. Senti-me automaticamente em falta. Ele não era muito grande e estava em cima da mesa sozinho mas era suficientemente grande para despoletar o mecanismo: -Porque é que ainda não tenho filhos? Pois, se tivesses um namorado... porque é que não tens um namorado? e amigos, porque é que não tens amigos suficientes ou suficientemente amigos? Porque é que ainda não conseguiste fazer a sopa da semana? Vais ficar doente... Porque é que ainda não conseguiste consertar a tua infância? O teu pai, a tua mãe, o teu irmão? Já tiveste mais do que tempo suficiente. E porque é que não consegues deixar o passado onde realmente está? E porque é que mesmo querendo não consegues fazer o trabalho em que realmente te sentes tu? E porque que é que… Enquanto ele estava ali deitado a acusar-me sucessivamente, não sei como, consegui apesar de tudo fazer o jantar. Passaram duas horas e o jantar podia ter sido feito em 30 minutos. Finalmente sentei-me, agarrei nele e levei-o à boca. Mmmm, que delícia. Dentro da minha boca calou-se e fiquei instantaneamente tranquila. O que é, é, o que tenho, tenho, o que sou, sou. Vai correr tudo bem. Acabei de comer, tranquila, levantei a mesa e pu-lo na máquina de lavar juntamente com o prato e a faca. 'galeão, a lata de atum'
Por Ivo Nunes
(2020; short story / objecto livre; 8 páginas) 'inventário de objectos'
Por João Pedro Coutinho
(2020; escrita poética / proema; 358 palavras) Relva | objeto de infância .............................................................. Eram lâminas verdes que rasgam a pele e afagam os sonhos. .............................................................. Sinos | objeto perturbador Ouviste? Era Deus a chamar-nos? Ou o sacristão bebeu demais outra vez? .............................................................. Boneca Mãe-Natal | objeto do dia-a-dia Empoderada, por chaminé deslizante e de profundidade sem pé, distribuiu, elegante, as oferendas que Nicolau esquecera mas não concedera. .............................................................. Lâmpada tubo fluorescente Sempre amanhã. A lâmpada da casa de banho em que te lavas todos os dias todos os dias pisca e todos os dias zumbe, do verbo zumbir, que rima com sumir, que é o que te apetece fazer e não fazes, hoje. Nem amanhã. .............................................................. Objetos diversos O despertador toca, a garrafa verte, o bule chia, mas é o búzio que te transporta para o que não tocas, para quando não vertes, para onde não chias. Transporta-te, sim, para o que não vês, para quando não és e para onde não vives, a não ser quando te permites viver. .............................................................. Óculos de sol Olho para mim e sou azul. Dantes contava-me como um número de cores de potencial sem número. Mas agora sou azul. Pálido sou agora, em tons azul. Mas já pálido era dantes sempre que me escondia atrás de ti. Despercebido, esguio, de uma invisível palidez. À tua frente agora sou azul. Dantes não, mas agora o sol queima-me os olhos. .............................................................. Telemóvel Osiris ganhou festival a cantar-te Caminho do hoje à antiguidade pré-clássica Do telemóvel a um deus enjaulado em galeria d’arte Temos geração piramidal de gente básica. .............................................................. Pestana e nariz Viagem ao coração de alguém Voou com o vento porque se pôs a jogar àquele jogo, sabes, de entre dois dedos escolher um deles e realizar um desejo ao seu titular se o dedo escolhido coincidir. Como dizia, foi o vento que a levou, aparentemente morta porque solitária e sem raiz, levou-a a um nariz titulado por outrem. Nariz pontiagudo, não respingado, sempre assuado que secamente a inspirou. A viagem seguiu por canais internos e não se tem notícia de que o titular da primeira a tenha estranhado nem de que o titular do segundo se tenha engasgado. Viagem invisível, não sentida, mas que aconteceu, podes crer. 'limites do humano'
Por Cecília Ferraz
(2020; short story; 10 páginas) 'micro-contos'
Por Aline Arantes
(2020; micro-conto; 129 palavras) ADEUS Quando contei à avó que você abanou o rabo na hora de partir, me respondeu em raro momento de lucidez. - E ainda dizem que os cães não falam. .......................................................... RÉDEAS DO MEU PASSADO É de noite que decido que você não me enlouqueceu. Enlouqueci-me, eu mesma, sozinha. .......................................................... JANELA Naqueles dias de clausura, desenvolveu uma certa habilidade. Olhava para dentro e quando olhava para fora, eram três o número de sóis. Voltava para dentro e, quando revirava para fora, todos os seus amantes (até os que não foram), atravessavam o céu em revoada. Se trancava lá dentro e, quando se libertava para fora, eram borboletas que choviam das nuvens. Seu eu interior e a janela, combinavam-se numa estranha mistura amorfa, tão alucinógena como chás e ácidos experimentados no passado. 'O BÚZIO'
Por Maria Lufialoísa
(2020; objecto da memória; 224 palavras) Quisera voltar ao momento em que encontrei o búzio bem maior que o seu desejo de sentir a concha das minhas mãos, tão cheio daquele som do mar musicalmente aterrador, e daquela cor a saber a areia e a sal, tão enrolado em espiral madura para albergar os hóspedes que supostamente nele nasceram e por ele passaram. Hoje, vazio e abandonado, só guarda o vento dentro de si, tal como eu guardo na memória dos meus ouvidos o ritmo das ondas que me batem e recuam sem me levarem para o longe. E guardo o ritmo do tempo em que as minhas mãos sonhavam, ainda vazias de memórias, com o som do búzio perdido na praia. Era então o tempo mais rápido que eu e não conseguia prendê-lo. Hoje o búzio acompanha-me no dia a dia em cima da secretária, olho para ele e vejo a liberdade que já teve, ouço a praia que era a sua, pressinto o habitante que transportou em si, sinto o mar como recordação daquela vida que foi longa a avaliar pelo tamanho das voltas e pelo rendilhado frio da pedra. Carregamos ambos a história que agora é a nossa, os momentos que nos deixaram para trás e os dias para ele eternamente mortos. Mas só eu escuto o tempo que traz dentro de si em ritmo de ondas. 'o limoEiRo'
Por Paula Carneiro
(2020; objectos e espaços; 29 páginas) O limoeiro do meu quintal está a vergar de tão carregado. Mas este ano não me atrevo a colher um único limão. O meu vizinho, o Sr. Veloso, um GNR aposentado, que do seu 1º andar realiza ações de vigilância, avisou-me que os gatos das redondezas se refugiram no quartinho do meu quintal. Agora infestado de pulgas. “Não”!!! Desde então, cada manhã, da janela da minha cozinha, olho pensativamente para aqueles citrinos interrogando-me sobre o seu destino. Um final de sábado, depois de descer a rua para depositar o saco dos plásticos na reciclagem, entrei no café da esquina, o «Mina d’Água», e ofereci o fruto ácido daquela árvore aos donos do café. Talvez tivessem interesse em vender ‘cariocas de limão biológico’. Homens da construção civil, homens de pele curtida pela intempérie e hidratada com cerveja, de mãos grossas como troncos de árvores e de olhar oco, fixaram-me quando entrei. Fizeram silêncio para de imediato o rasgar com dois comentários. O primeiro, relativo ao jornalista de futebol na TV: “Nem falar sabes!”; e o segundo, sobre os jogadores: “Os gajos só querem apanhar sol”. No meio daqueles homens distingui o empregado, cuja cabeça pendia na direção oposta da dos homens da construção civil. Vestido de camuflagem, como se a vida fosse um combate diário, o rapaz, aparentemente contaminado pelo ‘vírus digital’, ergueu os olhos e perguntou: “O que deseja?” “Nada em especial! Venho oferecer-lhe uma árvore cheia de limões que gostaria que fossem consumidos por alguém.” Uma expressão de surpresa invadiu o seu rosto, seguida de mil agradecimentos rematados com uma declaração de franca solidariedade humana. “Se precisar de alguma coisa, estamos aqui.” “Ohh! Obrigada!” 'o medo é o que te pode salvar'
Por Otília Lourenço
(2020; short story; 8 páginas) 'o peixe'
Por Maria Lufialoísa
(2020; objecto perturbador; 206 palavras) Não sei por que terei guardado aquele peixe frio e metálico, olho preso numa argola como se fosse o guardador das chaves perdidas. Pássaro das zonas aquáticas marcha pelo mundo sem fundo, conhece as ondas mansas e as loucas, os búzios perdidos nas praias e as conchas esgotadas na areia, viu já o escuro das profundezas e sabe o que significa dormir molhado nas águas agitadas da vida. Por isso talvez me aterrorize este objecto distante e esquecido algures no fundo de uma gaveta já sem uso. Este meu peixe pequeno demais para ser real já teve a sua importância, não me lembro bem porquê, mas hoje sinto o terror daquele olhar furado e vazio como se tivesse sido eu a pescá-lo e a trazê-lo para o meu prato, como se tivesse sido eu a cozinhá-lo sem o saborear, sem lhe dar tempo de crescer o suficiente para povoar todos os mares do mundo sem fim. Evaporaram-se os dias em que inconsciente o trazia nas mãos e lhe dava uso sem pensar no seu destino. Foram-se as memórias que deixei caídas junto aos objectos a que já dei importância. Deixei os dias caídos, e abandonados não consigo já encontrá-los. O tempo evapora-se nos cozinhados da vida. 'O velho'
Por Tiago Sanches
(2020; micro-conto; 117 palavras) 1. Pouso no ninho. Tirou o ninho, mas o ninho voltou a lá estar. Sentou-se resignado a contemplar. O canto era síncrono com o sol imortal. 2. Enquanto respirava o ar, o vento soprava-lhe e afagava a sua face. Vamos fazer tempo. Pairava o fantasma sobre eles os dois. Quanto lhes sabia esse abraço. 3. Dentro da secreta caixa de sapatos morava um amor capturado e desvelado num vidro instantâneo. Muito bem embrulhado em papel seda, a fotografia de colódio húmido era um deserto onde aqueles fluidos tocavam-se quentes e deliravam na solidão de um grama de prata. Precipitado, fixaram-se as formas e escondeu-se o interior de uma caixa escura e vazia. O mundo sabia mas ignorava. 'PATCHWORK - RETALHOS PARA UMA MANTA'
Por Patrícia Dias de Melo
(2020; short story / projecto final; 28 páginas) 'peek freans'
Por Ivo Nunes
(2019; objecto de memórias; 598 palavras) Voltando às memórias… Contornei a casa e entrei pela porta da cozinha, poeirenta e idosa, em necessidade de partilha de vida, a minha seria, como óbvio, e vitalidade nasceria do meu regresso. Demasiados armários cobriam a cozinha quadrada, digna de colecionadores de porcelana, como era o caso da minha avó, mas nem tudo o que a ela pertencia ou oferecia, causava nostalgia. Tudo, à exceção de uma ou outra coisa. Abri um dos armários com o intuito de me livrar do que me deprimia, as porcelanas, os pratos do século passado, as memórias que não têm papel neste futuro bestseller, tudo (!), mas eis que algo me despertou à atenção por trás das horrendas jarras de sangria. Lá no canto, como se a jogar ao quarto escuro, encontrei uma caixa de biscoitos e uma poderosa transcendência conquistou-me, como se de repente fosse projetado no tempo, até à infância. Isto não era uma caixa de biscoitos normal. Para os leitores, que têm o privilégio de assistir em primeira fila à minha grandiosidade, e sim, mencionarei isto as vezes que quiser e como quiser, porque sou eu e sou grande e fiquei com o vosso dinheiro, permitam-me enquadrar isto. Era um objeto repleto das minhas cores preferidas, o vermelho e o dourado, simbolizando sangue e realeza, e adoro ambos. O seu nome, Peek Frean’s, makers of famous biscuits. O título, em destaque na tampa, apresenta o desenho de uma coroa enorme e desconfortável, mas bela e gloriosa e menciona uma envolvência com o rei George VI. Recordo que isso foi algo que, então, me despertou à atenção, talvez mais do que o sabor dos biscoitos. Observei atentamente a caixa. Está escrito, nas suas laterais, que este objeto teve 23 compromissos reais e 33 medalhas de excelência e estas encontram-se como sombra, estampada em cada parede exterior da caixa quadrada, cobertas pelo nome do biscoito. Contei-as, mas parece que nem às 30 chegam. Não faz mal, se o rei George VI as comeu, então as lacunas matemáticas da Peek Frean’s não importam. Por motivos de grandeza, na minha infância revirava-a e observava-a como se fosse uma joia valiosa e vangloriava os seus cantos e perfeições. Essas perfeições perfeitas, são agora imperfeitas imperfeições. As suas cores evaporaram-se com o tempo, ferrugem comprou o seu espaço e consumiu as cores majestosas e daqui não comerei mais biscoitos. Apenas um trono, manualmente construído, consumirá as arestas desta caixa em cubo. Ah sim, se a pedra teve direito a uma coroa então os Peek Freans terão um trono! Mas agora a sério, estes biscoitos neste embalo, tiveram mais influência em mim do que aquilo que imaginava e penso que foi pelo facto de a cobertura me inspirar, simplesmente. As mensagens não são nada subliminares e eu não queria ser subliminar e não quero. Sou cru e real e estou aqui e agora, sou o que vêem. Os biscoitos eram bons, sim, mas qualquer pessoa com uma decente caldeirada ou um ovo estrelado, com manteiga de sal, me conquista o paladar. A mensagem é forte e inspira-me, pronto. Confesso, também, que o facto de a minha avó as oferecer regularmente, teve algum papel nisso. Penso que, a caixa, representa uma época da minha vida, que relembro com ternura e conforto e gosto de lá voltar. As tardes a ver televisão, com a caixa na mão, a companhia da minha avó, a inocência e simplicidade dos tempos. Tão querida que ela era. Eu amava-a muito e aquele acidente despedaçou-me. Abri a caixa, curioso e algo me surpreendeu. Por entre as paredes inundadas por ferrugem, encontrei um medalhão. 'pessoas ENCONTRADAS ENCONTRAM O SEU LUGAR'
Por Rita Carmo
(2020; short story / projecto final; 12 páginas) 'pestana e nariz'
Por João Pedro Coutinho
(2019; micro-conto; 107 palavras) Viagem ao coração de alguém Voou com o vento porque se pôs a jogar àquele jogo, sabes, de entre dois dedos escolher um deles e realizar um desejo ao seu titular se o dedo escolhido coincidir. Como dizia, foi o vento que a levou, aparentemente morta porque solitária e sem raiz, levou-a a um nariz titulado por outrem. Nariz pontiagudo, não respingado, sempre assuado que secamente a inspirou. A viagem seguiu por canais internos, e não se tem notícia de que o titular da primeira a tenha estranhado, nem de que o titular do segundo se tenha engasgado. Viagem invisível, não sentida, mas que aconteceu, podes crer. 'poema ao escondido'
Por Madalena Cabral
(2020; objectos e espaço; 230 palavras)
'por mais do que um punhado de anos'
Por Luísa Buzin
(2020; short story; 695 palavras) “Meu Deus, como fala, a Elizabete”. Quase 30 anos de amizade e essa ainda era uma surpresa para Lúcia, toda vez que encontrava a amiga. Não é como se Elizabete falasse tanto e tão rápido que preenchesse todos os espaços, não é como se não escutasse Lúcia e as coisas que ela também tinha a dizer. Mas quando engatava em um assunto, parece que tinha passado noites em claro formulando todos aqueles pensamentos. Mas Lúcia desconfiava que não tinha passado, não. Falar era meio que o método de pensamento dela. Falando, ela percebia a desconexão entre o que falava e a realidade e ia reformulando, não raras vezes, mudando de ideia. E não só falava e pensava, perguntava muito também. Queria saber de tudo, e às vezes se irritava de brincadeira com Lúcia. “Mas você não perguntou isso a ela, gente? Como pode, não foi a primeira curiosidade que você teve?”, ralhava, meio brincando, meio a sério. Lúcia estava acostumadíssima com essa característica da amiga, era até uma piada entre as duas. “Vai me deixar falar agora, querida?”, ela perguntava, meio rindo, a outra ria também. Finalmente parava para escutar. E realmente ouvia. Se tinha uma queixa que não podia ser feita dela era desinteresse nas pessoas e seus assuntos. Elizabete ouvia muito, com atenção e empatia. Talvez tão alta quanto o tom de sua voz. É, ela falava alto, além de falar tanto. Gesticulava, chamava atenção. Não é uma característica muito bem vista nas mulheres, principalmente na época em que as duas eram jovens. Esperava-se que fossem discretas, modestas, falassem baixo, quase desaparecessem camufladas ao papel de parede. Talvez por isso, o fato de que Elizabete falar alto não tinha virado motivo de piada amigável. Era um ponto sensível para a amiga. Um daqueles traços da própria personalidade que não a agradava, mas que também não conseguia mudar. Chamar atenção era feio, era falta de educação, era uma porção de coisas que ela mesma condenava, então seguia gritando sem perceber. Naquela manhã Lúcia não estava prestando tanta atenção assim ao que Elizabete tagarelava. Tinha outras coisas na cabeça e aquela já era terceira vez que elas falavam sobre aquele assunto. Quando estava realmente entusiasmada, a amiga podia ser bem repetitiva. Ascentia, concordava mesmo que parcialmente e deixava a amiga falar e falar. Lúcia nem percebia, mas já tinha se acostumado a transformar a voz da amiga em barulho branco, em marulho relaxante. Nenhuma das duas percebia, mas o falatório de Elizabete ajudava Lúcia a pensar. Ia fazendo listas mentais do que já tinha feito de bom na vida, do que tinha pra comemorar, enquanto a amiga desfiava seu rosário de percalços com a organização de uma festa de aniversário de 60 anos. Não raro usava as reclamações e formulações da amiga para fazer mudanças sutis na própria vida, recalcular algumas rotas, rever conceitos. Tantas coisas a preocupavam naquela manhã. Tinha lido muitas notícias antes do almoço, claro que nenhuma tinha sido particularmente boa ou que despertasse esperança nos rumos que a humanidade estava tomando. Aquilo nunca fazia bem pro estômago, lembrou a si mesma. Com muita frequência falava consigo mesma como quem fala com uma criança que bem sabe que não pode comer doces antes do jantar, mas come mesmo assim e depois não consegue nem disfarçar a carinha de culpada. A sua voz interna tem sempre aquela severidade compreensiva. Uma benevolência impaciente. E tão severa… Elizabete nunca era severa com ela. Tinha sempre uma qualidade para achar na amiga. Sempre uma nova admiração. Se bem que, Lucia achava que às vezes mereceria alguma severidade sim. Tantas vezes se pegava competindo com Elizabete em corridas em que acabava se cansando de correr sozinha. As duas influenciavam tanto a vida uma da outra. Ia além dos hábitos recém adquiridos de se proteger do sol... “Quanto tempo a gente passou ignorando os malefícios dele para a pele... Éramos tão jovens...”, pensava tantas vezes. Quando deu por si, foi novamente pela voz de Elizabete: “Essa é a melhor hora da praia, Lúcia. Temos que voltar mais vezes”. “Cada indivíduo é um universo inteiro de mistérios insondáveis mesmo”, acordou Lúcia e murmurou pra si mesma. E foram almoçar. 'relva e outros micro-contos'
Por Helena Campos
(2020; short story; 491 palavras) RELVA Estendemo-nos na relva, embriagados de infinito. A juventude inteira à nossa frente. Depois, as asas da morte, quais corvos funestos levaram-te E eu fiquei só. ...................................................... RELÓGIO DESPERTADOR O tempo é um cavalo a galopar e nunca volta para trás. Tomara que fosse todos os dias mudança para hora de Inverno, para que a mesma hora se repetisse duas vezes. Alterar o que foi feito. Ir lá atrás e corrigir as más escolhas. Percorrer todos os universos paralelos. Apurar a vida como se lapida um diamante. Helena e o relógio. 4 de Julho de 1984, um dia interminável numa década interminável. Os anos 80 e as suas escolhas que ensombraram o destino, para sempre. Diálogos intermináveis com os fantasmas que a perseguem. Agarra o tempo, decide, é hoje. Helena e o relógio, voltar atrás no tempo, refazer as escolhas, iluminar encruzilhadas passadas com a memória do presente. O relógio despertador tocou e a alma ocupava o mesmo corpo, e tinha havido vida antes da vida e esta era já a segunda oportunidade e ela voltou a falhar. Helena não deu oportunidade à missão que de novo lhe tinha sido incumbida. O relógio caiu e partiu-se e o tempo enfim parou… ...................................................... LIVROS Trepavam as estantes e apoderavam-se do tecto, disputavam os recantos esconsos das prateleiras abauladas. Eram cinco mil, talvez mais, uma multidão anárquica, repositórios de saberes dispersos, velados por quadros de antepassados com sorrisos irónicos i mortalizados na tela. O dono da casa morreu e aquele acervo de órfãos fechou-se para sempre. ...................................................... OBJECTOS PERTURBADORES As pernas da cadeira elevavam-se centímetros do chão, deixando um espaço potencial de esmagamento e o bebé gritava. O elevador descia e ao aproximar-se do chão, reduzia o espaço e esmagava o solo e o bebé gritava. A mão da porta do frigorífico era uma arma apontada e o bebé gritava. Os óculos de massa do tio eram grades que aprisionavam os olhos e o bebé gritava. Para o bebé, os objectos continham um potencial ameaçador que os adultos não conseguiam ver. ...................................................... O CESTO Levava à cabeça o cesto da vindima, restos de tardes ensolaradas, cachos roxos apanhados pela mão calejada para um lagar onde laboriosos pés martelavam a compasso. Teve sede, o sol escaldava, foi à fonte, a água gelada na garganta quente do estio, ali restou o cesto, símbolo do trabalho árduo até ao fim, e a alma foi-se. ...................................................... A BONECA O meu tio trouxe-a da Alemanha e colocou-a à minha frente. Era tão linda que lhe dei o meu próprio nome e um lugar especial no reino das bonecas. Quando morreu a minha infância, todas as bonecas desapareceram misteriosamente, só aquela ficou sepultada para sempre numa caixa de pó. ...................................................... AMPULHETA A ampulheta é um pequeno frasco com dois balões e uma cintura fina apoiados em duas bases de madeira. Dentro do frasco um pó amarelo marca o tempo, subindo, descendo, subindo, descendo. Quem me dera virar a ampulheta da vida e começar de novo. 'saudade'
Por Aline Arantes
(2020; short story; 8 páginas) |
'A BICICLETA'
Por Otília Lourenço
(2020; objecto perturbador; 8' 30'') 'coleção micro-contos'
Por Madalena Cabral
(2020; micro-contos; 1' 30'') 'GALEÃO, A LATA DE ATUM'
Por Ivo Nunes
(2020; objecto livre; 5' 42'') 'o medo é o que te pode salvar'
Por Otília Lourenço
(2020; short story; 6' 35'') 'peek freans'
Por Ivo Nunes
(2020; objecto da memória; 3' 51'') 'pessoas encontradas encontram o seu lugar'
#1 #2 Por Rita Carmo
(2020; short stories / projecto; 4' 55'') 'pestana e nariz'
Por João Pedro Coutinho
(2019; micro-conto; 1') 'poema ao escondido'
Por Madalena Cabral
(2020; objectos e espaços; 2' 08'') 'relva e outros micro-contos'
Por Helena Campos
(2019; micro-conto; 1' 36'') |